A recente aprovação de um projeto de lei em Ubatuba que autoriza o uso da Bíblia como material paradidático nas escolas municipais acendeu um intenso debate sobre os limites entre educação pública e religião. Com sete votos a favor e dois contrários, a medida foi aprovada pela câmara local e está mobilizando diferentes setores da sociedade, incluindo juristas, educadores e líderes religiosos. O ponto central da controvérsia gira em torno da constitucionalidade da proposta e do seu impacto sobre a laicidade do Estado, um princípio basilar da Constituição Federal brasileira.
Embora o projeto de lei não determine a obrigatoriedade do uso do conteúdo bíblico nas aulas, a sua autorização oficial abre espaço para que temas religiosos possam ser abordados em um ambiente que, por natureza, deve ser neutro do ponto de vista ideológico e religioso. Essa neutralidade é garantida pela Constituição de 1988, que estabelece a separação entre Estado e religião, justamente para assegurar que nenhuma crença seja privilegiada em detrimento de outras. Quando uma escola pública permite que textos religiosos façam parte de sua rotina pedagógica, levanta-se a questão sobre onde termina a liberdade de expressão e onde começa a imposição ideológica.
A defesa do projeto se apoia no argumento de que a Bíblia é um livro de valor histórico, literário e cultural, e que seu uso não teria viés doutrinário. No entanto, a prática pedagógica exige uma abordagem ampla e plural, capaz de contemplar diferentes visões de mundo. Quando uma única tradição religiosa é destacada no ambiente escolar, corre-se o risco de excluir ou desvalorizar outras formas de pensamento, o que pode gerar desconforto ou até mesmo discriminação entre alunos de diferentes crenças. A escola deve ser um espaço de encontro, não de exclusão.
Para além do aspecto religioso, a medida também coloca em xeque o papel do Poder Legislativo municipal na definição de conteúdos escolares. A elaboração de diretrizes curriculares é atribuição do Ministério da Educação e das secretarias estaduais e municipais de ensino, com base em parâmetros técnicos e pedagógicos. Quando vereadores decidem, por meio de leis, o que deve ou não ser ensinado, há uma clara invasão de competências, o que pode gerar insegurança jurídica e conflitos entre poderes. A educação não pode ser moldada ao sabor de interesses políticos ou religiosos momentâneos.
Juristas que analisam o caso destacam que a decisão da câmara de Ubatuba pode ser considerada inconstitucional por ferir princípios fundamentais da Carta Magna, como a liberdade religiosa e o respeito à diversidade. O Supremo Tribunal Federal já se posicionou em outras ocasiões sobre a necessidade de manter a laicidade do ensino público, justamente para evitar o favorecimento de qualquer religião dentro de instituições mantidas com recursos públicos. O uso oficial da Bíblia, mesmo como material paradidático, pode ser interpretado como uma violação desse princípio.
Outro ponto preocupante é o possível impacto dessa decisão sobre o ambiente escolar e a formação crítica dos estudantes. Ao introduzir um texto sagrado em atividades educacionais sem o devido cuidado pedagógico, corre-se o risco de criar confusão entre fé e conhecimento científico, comprometendo a qualidade do ensino. A missão da escola é formar cidadãos conscientes, capazes de dialogar com diferentes pontos de vista, e não promover crenças específicas como verdades absolutas.
Não se trata de negar a importância da religião na vida de muitas pessoas, mas sim de preservar o espaço escolar como um ambiente democrático, plural e inclusivo. É fundamental que todas as tradições sejam respeitadas, mas nenhuma deve ser imposta. O respeito à diversidade religiosa é um pilar de uma sociedade justa e equilibrada. Quando uma câmara municipal opta por aprovar uma lei que pode favorecer uma única visão de mundo, está, na prática, desrespeitando o princípio da igualdade.
A discussão sobre o uso de textos religiosos nas escolas deve ser conduzida com responsabilidade, escuta ativa e embasamento técnico. Em vez de decisões precipitadas e unilaterais, é necessário promover um amplo debate com educadores, pais, alunos e especialistas em educação e direito. Só assim será possível construir políticas públicas que respeitem a Constituição e promovam uma educação verdadeiramente inclusiva, voltada para o bem coletivo e não para interesses ideológicos.
Autor : Hiramaki Thicame